DISTRITAL OU PROPORCIONAL?
- Lucas Bigonha Salgado
- 5 de out. de 2017
- 7 min de leitura

Em 23/08, a Câmara dos Deputados suspendeu a votação da nova reforma política, deixando pendente a proposta de implantação do voto distrital misto, adotado na Alemanha.
A discussão não é nova. Já foi colocada na Constituinte de 1987, quando se percebeu que a diferença entre a democracia brasileira e a alemã não é a forma de voto, mas a democratização dos meios de comunicação e a existência de um jornalismo independente.
Por isso, a comissão temática da Constituinte responsável pelo capítulo da comunicação social elaborou o atual art. 223 da Constituição, que, conforme esclarecido pelo relator respectivo, prevê que o Estado deve manter, paralelamente aos meios privados e estatais de radiodifusão, um sistema público, isto é, “um sistema organizado por instituições da sociedade e que funciona independente do Estado e do capital. Se esta Nação tiver, oriunda dos meios de comunicação, essas três propostas de comunicação convivendo no campo social, seguramente ela terá encontrado o caminho da democratização. A comunicação não funcionará como aparelho ideológico exclusivo do Estado e terá na instituição pública, como é a BBC, como é o sistema da República Federativa da Alemanha e tantos outros sistemas europeus, uma terceira forma de oferta de produtos” .
A Constituinte também proibiu qualquer monopólio ou oligopólio nos meios de radiodifusão, impôs a regionalização das programações e submeteu as concessões e renovações de radiodifusão à chancela do Congresso Nacional, que ficou encarregado de zelar pelo cumprimento da Constituição, com o auxílio do Conselho de Comunicação Social.
A democratização dos meios de comunicação não foi conduzida só por parlamentares. Foi um pleito dos jornalistas e dos docentes, que, por meio de suas organizações de âmbito nacional, apresentaram a Emenda Popular 91, em que sustentavam: “Queremos pôr fim à censura, inclusive aquela determinada pelos donos de jornais, revistas, rádios e televisões. Queremos que a informação deixe de ser tratada como se fosse uma mercadoria e passe a ser encarada como um bem social. Queremos que a liberdade de expressão no Brasil não se limite à liberdade de os empresários de comunicação têm de defender seus próprios pontos de vista. Queremos garantir o amplo acesso aos meios de comunicação e a participação direta dos setores organizados da sociedade civil na definição de uma política democrática de comunicação” .
Ao final, o encaminhamento da votação do texto em plenário explica a dimensão da nossa Constituição: “estamos entregando à sociedade brasileira um instrumento que ela nunca teve ao longo de sua história, ao menos constitucionalmente. Estamos entregando os mais amplos, os mais completos e os mais definidos mecanismos de liberdade. Nunca, como nesta Constituição que ora se escreve, se terá falado com tanta clareza sobre a liberdade de informação e a liberdade de divulgação. Este não é um patrimônio dos jornalistas nem dos artistas. É um patrimônio que a Constituinte vai entregar à sociedade brasileira, que não seria nem será democrática se acima de tudo, não tiver a democracia de falar, se não tiver a liberdade de expressão. Mais do que isto, chamo a atenção dos Srs. Constituintes para a pesada responsabilidade que recebem a partir deste texto, quando se acabou com o monopólio de duas pessoas para definir quem terá rádio e televisão neste País” .
A Constituição veio (a muito custo), mas sua concretização não. A atuação do Congresso Nacional tem sido inexpressiva na área e o sistema público de televisão só foi instituído em 2007, e de forma deficiente, pois a Empresa Brasil de Comunicação (EBC) é principalmente um veículo de comunicação do Estado, e não dos grupos da sociedade. Não bastasse isso, a Lei n° 13.417 vedou “qualquer forma de proselitismo na programação das emissoras públicas de radiodifusão” e eliminou a estabilidade do dirigente da EBC, sepultando um sistema público que mal chegou a nascer de verdade.
Apesar disso, a democratização está chegando, trazida por uma força incontrolável e devastadora, a internet. Ela operou o milagre: possibilitou que o sujeito, acostumado à condição de destinatário passivo de um fluxo teleguiado de informações, passasse à postura ativa de um explorador, capaz de buscar a informação e até mesmo confrontá-la.
Ademais, numa sociedade em que a quantidade de informação deixa de ser fator limitante, a credibilidade passa a ser mercadoria, abrindo progressivo espaço para pessoas sérias e fazendo com que antigas práticas tenham um custo cada vez mais caro.
Com algum atraso, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que, num país em que o fluxo de informações ainda não é pleno, o financiamento de campanhas por pessoas jurídicas anula o princípio democrático, por gerar um processo de legitimação invertido e obscuro, em que o poder econômico é causa do poder político, numa forma de democracia ao avesso do avesso do avesso. Com o julgamento, a Corte abriu caminho para que a progressiva democratização da comunicação possa chegar finalmente à política.
No sistema existente, os partidos (= propaganda partidária) e os candidatos (= propaganda eleitoral) se apresentam à população de forma pouco efetiva, pois é inviável discutir política em poucos minutos anuais em rede ou em inserções de poucos segundos. Mesmo a radiodifusão estatal é subaproveitada na efetivação do acesso à política, de modo que ela chega exclusivamente por meio de intermediários ou de propagandas menos explícitas.
A internet muda isso, pois permite que os partidos e candidatos se expressem sem limitação de tempo e a custos irrisórios, e mais, permite ao internauta escolher o momento conveniente para discutir política.
Portanto, se a Justiça Eleitoral, em sua função administrativa, viabilizar o encontro direto entre o cidadão e a política - por exemplo, centralizando, em sítio eletrônico com interface acessível, o rol de partidos existentes, sua breve apresentação e o caminho para seus respectivos endereços eletrônicos -, será possível fazer, a baixo custo, o que vultuosos valores destinados a custear a gratuidade de antena e o fundo partidário não conseguem.
Recentemente um Presidente da República, com desaprovação da população, da imprensa, das instituições e da iniciativa privada em geral, se manteve no comando, barrando denúncia de corrupção. Com isso, a um alto custo social, nos ensinou a coisa mais importante sobre o título político da Constituição: ele funciona.
Descobrimos que o que mantém, derruba ou direciona um presidente não é a televisão, a Folha de São Paulo, o capital internacional, as instituições ou o ânimo da população, é o seu capital político.
Significa que é o Congresso Nacional quem manda no Brasil. É ele que tem os poderes para enquadrar Presidentes da República, fiscalizar e interromper a má gestão da coisa pública, quebrar oligopólios dos meios de comunicação, conduzir investigações, com poderes típicos de autoridades judiciais... ou se entregar, em troca de privilégios para si ou para seus financiadores, cargos para amigos e familiares, mensalinhos e mensalões.
Aliás, o capítulo da Constituição que trata das atribuições do Congresso Nacional foi concebido para um modelo parlamentarista ou semi-presidencialista, como se pode observar no “Projeto A” de Constituição que chegou ao plenário da Constituinte .
Então, se o leitor não quer todo esse poder adormecido a seu serviço, há aqueles que querem e que infelizmente aproveitarão o enfraquecimento dos partidos e a descrença na política para estruturar enormes bancadas, guiadas por interesses paralelos aos partidários, e que, ao contrário desses, não precisam ter a realização da Constituição Federal como propósito.
Retomando a questão do sistema distrital misto, a divisão do Brasil em distritos foi rejeitada já na votação do Código Eleitoral, sendo paradigmática a explicação de Arruda Câmara em plenário, de que, “Quanto à votação distrital, também foi repudiada já no fim da República Velha. É muito mais difícil – é raciocínio que até uma criança de aula primária entende – com (sic) o potentado ou o tubarão abafar, com o seu dinheiro, o Estado todo do que um distrito. Se êle se concentra num distrito, o abafa” .
Após, na Constituinte, o encaminhamento da votação que rejeitou o sistema distrital foi o de que “é impossível estabelecer uma posição majoritária num determinado distrito por uma posição ideológica, seja ela de direita, de esquerda ou de centro porque o critério da população será em termos de favores, de cargos, de empregos. Vamos consumar o fisiologismo de aldeia, o coronelismo de aldeia, vamos cristalizar algo que na política brasileira, vem da República Velha, do Império, e chama-se coronelismo, são essas oligarquias que, através da máquina estatal, através do poder do dinheiro, poderiam concentrar em cada localidade a sua força para eliminar aquela posição político-ideológica que possa apresentar-se numa cidade.”
Portanto, num contexto em que as autoridades federais e o Judiciário proclamam estarem estruturados e dispostos a eliminar as organizações capazes de abafar todo o Estado, o voto distrital é inoportuno, especialmente porque certamente subsiste a capacidade de oligarquias econômicas monitorarem e anularem lideranças e talentos em nível local.
Já o benefício tradicional do modelo é o de que uma proximidade física possibilitaria a maior penetração da política no cotidiano do cidadão, diminuindo o deficit de representatividade. Entendo que esse benefício se enfraquece gradativamente na era da informática, em que o trânsito instantâneo e ininterrupto de ideias evidencia que a verdadeira distância entre a população e a informação não é mais a barreira física.
Portanto, acho que, mesmo após quase 30 anos, os defensores do sistema distrital misto não refutaram a resposta do Constituinte José Genoíno no debate em plenário: “não podemos, como diz V. Ex.ª, discutir o sistema eleitoral apenas abordando a questão do voto, a maneira de votar. É necessário relacionar os vários fatores que interferem na vontade de o eleitor expressar o seu voto. Então, é necessário discutir três elementos básicos: sistema eleitoral, os meios de comunicação de massa e o papel das Forças Armadas. Gostaria que os defensores do sistema distrital misto da Alemanha viessem a esta tribuna defender a legislação alemã sobre os critérios de concessão de rádio e televisão” .
O leitor que ensaiou associar o tema a uma posição de esquerda talvez goste de saber que o relator da comissão da Constituinte responsável pelas comunicações foi Artur da Távola, um dos fundadores de expressivo partido de direita.
Aliás, a análise dos diários oficiais da Constituinte de 1987 me convence de que a coisificação da pessoa, seja pela eliminação de sua autodeterminação, da supressão das condições de existência digna ou da retirada da possibilidade de livre iniciativa, não é e nem pode ser legitimamente pauta de esquerda, direita ou de centro.
Mais do que isso, a disponibilização de documentos oficiais na internet muda até a forma de percepção da história, pois contá-la deixa de ser privilégio de alguns. Torna-se possível, até mesmo, transpor questões tormentosas para os juristas, de modo a explicar, por exemplo, que o artigo 5° da Constituição não omitiu os estrangeiros residentes no país com a finalidade de alijá-los de todo aquele rol ; ou que o princípio da irretroatividade tributária foi uma resposta direta às alterações da legislação do imposto de renda em dezembro de cada ano, com efeitos sobre o calendario que terminava ; ou que a atribuição do Congresso Nacional para “resolver definitivamente” sobre tratados foi concebida para significar “aprovar ou não” .
E se insisto na democratização dos meios de comunicação, é porque, nos diários da Constituinte de 1823, os últimos atos da Assembleia, antes de Dom Pedro I dissolvê-la, foram votar a liberdade de imprensa e proteger uma elite intelectual, que usava os meios de comunicação para confrontar os integrantes portugueses das forças militares, os quais, sem direito de antena, responderam ameaçando pararem de reconhecer a autoridade do Imperador . Então, não consigo mais deixar de pensar que a comunicação social é, foi e será o epicentro da política, para o bem ou para o mal.

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